"Snowdrop", "Pachinko" e outros inseriram eventos históricos no plot, que marcaram a trajetória do país
(Netflix/Apple TV+/Divulgação)
Além da ficção, os dramas coreanos também podem abordar acontecimentos que marcaram a historicidade da Coreia. No caso, há produções hoje que contém em suas tramas fatos históricos do país, do passado e da contemporaneidade; o que pode ajudar o espectador a entender um pouco mais a respeito da História do país que exporta os K-dramas para o mundo.
Nisso, títulos como Pachinko, Move to Heaven e mais entram na lista de dramas que possuem acontecimentos da realidade no plot. Seja envolvendo conflitos mundiais ou crises econômicas, tais séries coreanas utilizam do audiovisual para trazer sensibilidade e seriedade aos fatos retratados, misturando-os aos enredos das produções. Vale dizer que, nesses casos, as tramas que abordam tais assuntos não são leves e engraçadas o tempo todo — há carga dramática inseridas nesses dramas que podem não ser para todos os públicos. Além disso, alguns desses dramas geraram discussões na Coreia do Sul pelas representações feitas.
Confira abaixo a lista de doramas inspirados na vida real, e têm acontecimentos da História da Coreia do Sul no enredo, e também saiba onde assistir cada um deles.
Atenção: o texto abaixo pode conter spoilers dos enredos!
Dramas com fatos reais da Coreia do Sul para conhecer
1. Move to Heaven (Netflix)
A primeiro momento, o drama Move to Heaven (ou A Caminho do Céu) não parece conter um fato histórico, pois ele é visto mais para o final da produção. No enredo geral, um ex-presidiário chamado Cho Sang-gu (feito pelo ator Lee Je-hoon) recebe a missão de se tornar guardião do sobrinho, Han Geu-ru (Tang Joon-sang), após a morte do pai do rapaz. Nisso, Sang-gu descobre que Geu-ru tem a síndrome de Asperger, e que o jovem administrava com o pai a empresa Move to Heaven: serviço responsável por limpar e reorganizar ambientes e pertences de pessoas que faleceram.
O fato real em questão é visto na reta final do drama. Após passarem o dia juntos, Sang-gu descobre que Geu-ru estava, na verdade, concluindo um percurso que fazia com o pai periodicamente: visitar um parque de diversões, ir a certos restaurantes, e fazer uma oração numa estação de trem. Depois de uma breve discussão, Sang-gu conclui que o irmão havia sido vítima do desabamento da loja de departamentos Sampoong, e que o pai de Geu-ru não havia cumprido sua promessa com Cho Sangu-gu por conta da tragédia.
O desabamento em Sampoong aconteceu após o prédio da loja em questão colapsar no dia 29 de junho de 1995. Inaugurado cinco anos antes em Seul, a loja de departamentos começara a apresentar problemas em sua infraestrutura em abril, e no dia do desabamento, a administração não emitiu avisos formais aos clientes e lojistas de que era preciso evacuar o prédio horas antes. Perto das seis da tarde, colunas da ala sul do shopping caíram e ocasionaram a destruição, matando 502 pessoas e ferindo cerca de 900, e mais de mil clientes ficaram soterrados.
Lee Joon, então presidente do Grupo Sampoong, foi sentenciado a dez anos e seis meses de prisão por negligência criminal — fora ele quem havia decidido mudar as colunas de sustentação da loja na época da construção, e que barrou o alerta de evacuação no dia 29, com receio de que o shopping perderia lucro e clientes com o assunto. Sua pena foi posteriormente diminuída para sete anos e seis meses. Seu filho, Lee Han-sang, que era CEO da loja, foi sentenciado a sete anos de prisão por homicídio culposo e corrupção.
A tragédia teve forte repercussão no país, com protestos organizados pela população sul-coreana e uma revisão geral do regulamento de segurança dos prédios da capital. O desabamento da Sampoong foi abordado não só em A Caminho do Céu, como também nos dramas Reply 1994, Faça Chuva ou Faça Sol e Chocolate. O diretor Park Chan-wook produziu um curta-metragem sobre o incidente em 1999. A adição do fato histórico ao drama com Lee Je-hoon mostra que, em graus maiores ou menores, o acontecimento impactou a sociedade coreana.
2. Snowdrop (Star+)
O drama Snowdrop deu o que falar em sua época de exibição em 2021 e no início de 2022. Isso porque o título sugere retratar eventos ligados à luta contra o regime do ditador Chun Doo-hwan no plot. Aqui, a produção aborda o encontro entre uma estudante universitária chamada Eun Youngro (feita pela Jisoo do BLACKPINK, que debutou solo recentemente) e um rapaz chamado Im Suho (Jung Hae-in), que na verdade é um espião da Coreia do Norte.
Conforme o assunto foi discutido no período de transmissão do K-drama, a emissora JTBC, responsável por Snowdrop, divulgou nota explicando que a trama não possuía ligações com o Movimento Democrático da época, mais precisamente o ano de 1987. Entretanto, a companhia disse que elementos históricos da Coreia do Sul do período, como a eleição presidencial e a atuação da Agência de Segurança Nacional na ditadura, seriam mostrados superficialmente. A JTBC declarou que o roteiro do drama havia sido tirado do contexto pelos netizens.
A primeira sinopse de Snowdrop também chegou a divulgar que a série era inspirada nas memórias de um espião da Coreia do Norte, ajudado na realidade por uma estudante da nação Sul, após fugir de um campo de prisioneiros políticos. Mas tal relato foi modificado pela JTBC no roteiro para evitar maior backlash da audiência.
3. Pachinko (Apple TV+)
Baseado no livro da coreana-americana Min Jin Lee, Pachinko foi o primeiro drama produzido pelo streaming da Apple TV+. O enredo é fortemente inspirado na vida real, ao retratar a vida da personagem Sunja (feita na série pela atriz Kim Min-ha) do nascimento à velhice, e sua luta pela sobrevivência com a família. Nisso, a produção mostra como a protagonista sai de uma pequena vila em Yeongdo em direção ao Japão, no período em que a Coreia (até então uma nação única nos anos 1910) tornou-se território submisso ao império nipônico.
O chamado Tratado de Anexação Japão-Coreia foi assinado em 22 de agosto de 1910, no qual o imperador coreano Gojong forçadamente deveria ceder seus direitos de soberania ao império de Mutsuhito. O tratado foi resultado de um plano do Japão de anexar a Península Coreana ao seu domínio, na época em que o governo japonês pretendia fortificar seu expansionismo. A Coreia, inclusive, já era território protetorado do Japão desde 1905, após a assinatura do Tratado de Eulsa.
A ocupação japonesa na Coreia durou até 1945, quando a nação nipônica foi enfraquecida pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, após a queda das bombas nucleares em Hiroshima e Nagazaki. Apesar disso, nos 35 anos de domínio, o governo japonês instaurou um regime de opressão e violência à população da Coreia, que incluíram diversos atentados socio-culturais: instauração de campos de trabalho forçado; prostituição e escravidão de cidadãs coreanas; supressão da língua, música e literatura local; e imposição de uma identidade japonesa aos coreanos, com a utilização de nomes advindos da nação (na época) opressora. Após a Segunda Guerra, o país enfrentou ainda os conflitos que ocasionaram a Guerra da Coreia e a divisão entre Coreia do Sul e do Norte, vigente hoje.
A história da personagem Sunja ocorre durante toda essa época; e é apresentado em Pachinko a forma com que o povo coreano foi marginalizado e carregou sequelas de tais implementações forçadas. Em 1965, o Japão e a Coreia do Sul assinaram um acordo que tornou os tratados citados ilegais, e em 2010, o então primeiro-ministro japonês Naoto Kan fez um pedido de desculpas público ao povo coreano, por tudo que aconteceu nos mais de 30 anos de ocupação.
4. Mr. Sunshine - Um Raio de Sol (Netflix)
Outro dorama que entra para a lista é Mr. Sunshine - Um Raio de Sol, que explora eventos históricos de um período anterior a Pachinko: a época da expedição dos Estados Unidos na Coreia em 1871 (chamada de Shinmiyangyo), durante o final da Era Joseon.
Entre os dias 10 e 11 de junho de 1871, ocorreu na Coreia a chamada Batalha de Ganghwa, quando as forças da dinastia Joseon lutaram contra forças militares estadunidenses. A presença dos EUA em território coreano se deu pelo fato de que a nação americana, com navios do Esquadrão Asiático, previamente estava no país para tratar de reuniões diplomáticas envolvendo o desaparecimento do navio mercante General Sherman. A Batalha de Ganghwa aconteceu quando a marinha coreana atacou dois navios dos Estados Unidos em 1º de junho daquele ano (que iriam resgatar os marinheiros da navegação SS Sherman), alegando que o país ocidental havia quebrado leis territoriais ao enviar navegações armadas para as águas da Coreia.
Os EUA decidiram por não reconhecer a quebra da lei, e travaram o conflito perante a falta de uma retratação formal do governo das forças armadas coreanas. Nisso, a viagem diplomática virou a batalha retratada no início de Mr. Sunshine — o personagem Eugene Choi (feito por Lee Byung-hun) foge da escravidão na Coreia durante a batalha das expedições, e viaja em direção aos Estados Unidos, onde se torna cidadão e oficial da Marinha.
Anos depois, Eugene volta à Coreia durante uma missão, e se depara com um grupo revolucionário que pretende deter o plano do império do Japão de ocupar a Coreia; o que, historicamente, aconteceria anos mais tarde. Outro personagem do núcleo de protagonistas de Mr. Sunshine também é envolvido na Batalha de Ganghwa.
Além dos fatos ocorridos em 1871, o drama também aborda o governo do Imperador Gojong, o Tratado de Eulsa e a Guerra Hispano-Americana de 1898. Mr. Sunshine é um prato cheio para quem busca K-dramas com assuntos históricos entrelaçados à trama principal.
5. Vinte e Cinco, Vinte e Um (Netflix)
Apesar de um dos focos de Vinte e Cinco, Vinte e Um ser o romance, há fatos reais abordados no enredo do drama também. A história, que foca na juventude da jovem Na Hee-do (interpretada por Kim Tae-ri) e do garoto Baek Yi-jin — um dos últimos papéis de Nam Joo-hyuk antes do alistamento militar em 2023 —, entrelaça com a crise dos Tigres Asiáticos de 1997.
Ocasionada, segundo estudos, por uma inicial desvalorização da moeda tailandesa, em decorrência de políticas que afetaram o câmbio do país, a crise financeira de 97 causou um efeito dominó nas nações do Leste Asiático. Rapidamente, a Coreia do Sul teve o won desvalorizado no mercado financeiro, e precisou recorrer ao FMI em busca de empréstimos para se salvar da quebra. Na época, o país chegou a pegar mais de 50 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional.
A crise afetou drasticamente a Coreia, suas companhias e empresários: o desemprego cresceu junto da desigualdade social, a política de afastamento foi adotada no país, e diversas empresas fecharam as portas. Isso acontece com a família de Baek Yi-jin em Vinte e Cinco, Vinte e Um, que durante a crise perdeu tudo e foi de um núcleo chaebol para a pobreza; o que leva o personagem de Nam Joo-hyuk a se separar dos pais e irmão e viver por conta, enquanto cobradores o buscam para ter suas dívidas pagas após a falência do pai.
A trama da protagonista Na Hee-do também se desenvolve a partir da crise financeira. A personagem muda de colégio para seguir o sonho de ser esgrimista depois que o clube de sua própria escola é fechado, numa ação de contenção de gastos e financiamento de projetos estudantis. Como dito acima, Vinte e Cinco, Vinte e Um mostra não só a relação entre Hee-do e Yi-jin, como também os dilemas enfrentados por ambos em decorrência da crise dos anos 90, que é motivo de debate em relação às causas até hoje.
6. A Juventude de Maio (VIKI)
Também com a luta pela democracia na Coreia do Sul no enredo, o drama A Juventude de Maio (ou Youth of May em inglês) mistura a história de estudantes universitários com os acontecimentos que assolaram a cidade de Gwangju em 1980. Os personagens, como do ator Lee Do-hyun, vivenciam os fatos que reverberaram no massacre que demarcou o país.
Em maio daquele ano, protestos contra a ditadura e a lei marcial de Chun Doo-hwan ocuparam as cidades sul-coreanas, depois do político tomar o governo que estava nas mãos do também ditador Park Jung-hee. Gwangju foi um dos polos estudantis em que sindicatos, criados por professores e alunos, foram estabelecidos para organizar manifestações contra o golpe feito por Doo-hwan em dezembro de 1979, e a favor da liberdade de expressão e democratização do país.
Em Gwangju, os cidadãos tomaram o controle da região no dia 18 de maio, mas foram brutalmente contidos pelo exército, o que ocasionou em diversas mortes e prisões dos protestantes (mais de 1300 pessoas foram presas pelo governo). O massacre de Gwangju é visto como um símbolo da Coreia do Sul contra a ditadura, e influenciou diversos outros protestos ocorridos no país na década de 80 em prol da democracia. A data de 18 de maio na Coreia serve para homenagear as vítimas.
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FONTE: Netflix, Rakuten VIKI, Memorial da Democracia, AsianWiki, Relações Exteriores (.com), Radioagência Nacional, VOI
Chicago Typewriter,sobre a luta contra a dominação japonesa.