"Single's Inferno" é o presente de natal que a Netflix deixou embaixo da minha árvore
(Netflix/Café com Kimchi)
Há algo realmente poderoso sobre o hábito. Você não consegue ir para a cama dormir enquanto não checar se o ralo do banheiro está fechado e as portas trancadas; não consegue cozinhar sem música — especialmente aquela sua playlist de canções brasileiras que quase tem o cheiro da casa alugada da sua mãe em meados dos anos 2000; não consegue chegar no quinto dia útil do mês sem se presentear com itens daquele aplicativo estrangeiro cujas encomendas estão sendo taxadas pra caramba. Na verdade, você até consegue, mas não quer abrir mão de nada disso. Afinal, é o seu hábito.
No último mês de 2021, a Netflix lançou um programa que acabou entrando na lista de hábitos que eu, definitivamente, não quero renunciar. "Solteiros, Ilhados e Desesperados" estreou com um quê de "De Férias com o Ex" graças ao combo de corpos sarados em roupas de banho e uma ilha paradisíaca onde tudo pode acontecer. Porém, isso nem foi o que mais despertou a curiosidade. Eu queria mesmo era ver todo o lenga-lenga do homem romântico de K-dramas se desmanchando aos olhos do público nada seleto que consome produções coreanas no referido streaming. Se isso aconteceu, não sei bem, mas o reality show me fisgou de um jeito muito específico.
No dia 25 de dezembro daquele ano, tive aquele típico encontro marcado com a ressaca pós-ceia, acordando entre 11h e 13h e iniciando meu brunch de restos. Preparei um prato cuja complexidade agregava desde o frango gelado até o pastel murchinho (que só existe na mesa quando você é o primeiro a levantar), abri o catálogo da Netflix sem pretensão alguma e dei play naquele curioso programa coreano lançado na semana anterior. O pôster de divulgação brilhou quase em luz neon na tela da minha televisão. Por que não?
É ridiculamente fascinante ver os hormônios quase se materializando naquela praia — mas só entre os rapazes. Eles estão tão obcecados em chamar a atenção das mulheres menos interessadas neles que começam a performar e criar rixas entre si. Não importa o quanto rolem na areia em provas humilhantes, as figuras femininas mais cobiçadas continuarão os olhando com indiferença. Inclusive, alguns espectadores podem odiá-las por isso, mas o que falta de tempero nelas é o que adiciona certa emoção ao enredo do reality. Que atire a primeira pedra quem não sentiu nada vendo a Jia, na primeira temporada, adestrar seus fieis cachorrinhos.
(Reprodução/Netflix)
O panetone, intocado na noite anterior, começa a entrar em ação quando vemos aquela bronzeada carismática, de personalidade solar, ser ignorada pelos rapazes com quem parecia ter tido uma ótima química. Você é capaz até de comer as frutas cristalizadas de tanta agonia em ver um monte de barbado correndo atrás de uma mulher pálida e com aparência demasiadamente juvenil para sequer andar ao lado deles. O pastel murcho que desapareceu nos primeiros minutos do seu Mc Sobras faz falta quando você ouve algum rapaz citar a lista de preferências mais esquisita já vista. Orelhas pequenas. Feição de cachorro filhote. Cabeça oval. Mandíbula pontiaguda. Quem repara nisso?
Acabou se tornando um hábito assistir ao programa beliscando comidas de natal enquanto toda a família faz barulho na sala. Às vezes, uma ou outra pessoa da casa senta junto contigo para perguntar sobre o programa, já que você está quieta há horas. “É igual ao De Férias Com o Ex?” “São atores daquelas séries coreanas que você assiste?” Não demora muito para que se interessem, de fato, pela trama ou, o mais provável, te deixem de lado com o seu reality show para comentar sobre o quão rápido o pudim acabou. Esse comentário vem geralmente de quem mais colaborou para o fim da cobiçada sobremesa.
(Reprodução/Netflix)
"Solteiros, Ilhados e Desesperados" adicionou um pouco de “dia comum” em uma das datas mais importantes para a maioria das famílias e se tornou um ritual delicioso. Agora parece tão natalino quanto assistir "O Grinch" ou se arrumar com roupas de gala para ficar sentado no sofá de casa; é tão natal quanto abrir o Spotify, ver a imensidão de músicas intituladas “All I Want For Christmas is You” e ficar se perguntando se todas são canções originais ou covers do hit da Mariah Carey. Você nunca saberá, já que não faz questão de clicar em cada uma delas. É tão 25 de dezembro quanto o calor arrebatador do verão — afinal, a vibe praiana do reality show parece mais com a experiência brasileira desse feriado do que os cenários repletos de neve nos filmes.
Uma vez que o divertidíssimo programa coreano estabeleceu um vínculo inquebrável com a minha ceia dormida, não me importo que seja combinado ou 100% roteirizado. É uma farsa? Os relacionamentos são de mentira? Aquelas pessoas já se esbarraram no passado? E daí? Papai Noel não existe de verdade e todos continuam o utilizando como decoração natalina. A aparência de um Grinch me assusta menos do que a possibilidade de a Netflix não renovar "Solteiros, Ilhados e Desesperados" para uma nova temporada. Ou, pior, lançar o reality show em qualquer mês que não seja dezembro.
Todo ano quero ver os personagens Ctrl C + Ctrl V chegando naquela bendita ilha. Me tragam mais camisas sociais na praia, lágrimas no quartinho de maquiagem por causa de pessoas as quais conheceram há dois dias, suspense para o aguardado e sensual beijo na bochecha, apresentadores com comentários mais afiados que as mandíbulas preferidas daquele cara malhado. Quero amar ou odiar os mesmíssimos arquétipos de sarados burros, bonecas Barbie, empresários sentimentais e bronzeadas inteligentes com grandes universidades no currículo. Silenciei, no Twitter (atual X), todas as palavras referentes ao programa, embora eu esteja ansiosa para a terceira e já lançada temporada. Nos vemos no natal.
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