Entre ficção e realidade: a romantização de homens coreanos a partir da Hallyu
- Juliana Palmeirim da Silva
- há 4 horas
- 9 min de leitura
A expansão da Onda Hallyu criou um imaginário romântico poderoso mas, também, abriu espaço para armadilhas fora das telas

(Divulgação / cadernopop)
Por anos, as produções culturais sul-coreanas foram conquistando cada vez mais espaço no mundo. E no Brasil, o movimento não foi diferente: de acordo com uma matéria da Billboard Brasil de março de 2025, o país tornou-se um dos principais consumidores de K-pop. Além disso, um estudo da Netflix mostrou que, entre 2019 e 2022, as produções coreanas foram as mais assistidas na plataforma, com um aumento de seis vezes no número de visualizações.
Mas toda essa aproximação intercultural abriu espaço para que o limite entre ficção e realidade entrasse em declínio entre muitos fãs, levando à contratação de serviços perigosos e golpes financeiros em busca do amor ideal.
A psicóloga Gardênia Pereira explica que este processo está diretamente ligado à idealização afetiva criada pelas produções culturais coreanas. “Os K-dramas idealizam muito as relações, e isso cria um padrão de homem que não existe. Muitas mulheres acabam acreditando que precisam encontrar alguém exatamente daquele jeito, o que gera frustração, fuga da realidade e abre espaço para armadilhas emocionais e financeiras”, afirma.
Nesse sentido, a estudante alemã Lydia (nome fictício para a fonte, que optou por manter-se anônima nesta reportagem) aponta que, mesmo sabendo das diferenças entre o real e a ficção, a partir do que via em vídeos e em reportagens, quando fez intercâmbio para a Universidade Konkuk em 2023, ainda tinha certas expectativas quanto aos homens.
“Eu era realista por causa das experiências que eu via no TikTok e no Instagram mas, no fundo, ainda pensava que os homens coreanos tivessem um lado romântico, cavalheiro, em comparação com os alemães”, explica.
O choque entre o romance dos K-dramas e as experiências reais
O impacto da idealização de homens coreanos é sentido na prática por muitas mulheres estrangeiras que chegam à Coreia do Sul. Outra estudante alemã, Anna (que também optou pelo sigilo ao seu nome verdadeiro), morou durante dois semestres na Coreia do Sul enquanto fazia intercâmbio na Universidade Dankook. Ela conta que, antes de se mudar para o país, acreditava que “os homens coreanos eram muito carinhosos, atenciosos e que gostariam de esperar antes de se envolver intimamente”.
No entanto, logo percebeu que não era bem assim: “senti que os homens que conheci eram muito tóxicos, conservadores e estavam, principalmente, procurando apenas encontros casuais. Em alguns casos, me perguntaram se eu queria ir para a casa deles ou para um motel logo no primeiro encontro, do que eu não gostei. Nos K-dramas, os homens sempre planejam encontros românticos e querem passar um bom tempo juntos. Mas, na realidade, eles não são tão diferentes dos homens europeus”.
Lydia vivenciou algo semelhante, mas ela destaca que o maior choque não tem a ver com comportamento, mas sim com a intenção: “acho que a diferença mesmo é que nos dramas, no K-pop ou em qualquer outra coisa, parece que os homens realmente se apaixonam. Eles ficam super a fim de você ou do personagem principal. E eles são muito comprometidos. E na vida real, percebi que eles não são nada assim. Eles gostam de aventuras, mas não se comprometem com essas coisas [de relacionamento]. Acho que os K-dramas e outras produções dão a impressão de que tudo é duradouro, enquanto na realidade, para os homens sul-coreanos, é só a curto prazo”, diz.
Para Gardênia Pereira, essa percepção está ligada à forma com que produções sul-coreanos vendem a ideia de relações duradouras e intensas ao público do exterior. “Nos dramas, tudo parece definitivo, profundo e cheio de entrega. Isso cria a impressão de que o amor sempre vai ser assim. Quando a pessoa se depara com relações reais, mais fluidas e menos comprometidas, isso pode ser vivido como uma quebra muito grande de expectativa”, analisa a psicóloga.
O movimento de apresentação “perfeita” do dia a dia e das pessoas sul-coreanas se conecta com o avanço da chamada Hallyu, ou “Onda Coreana”: a estratégia socioeconômica da Coreia do Sul pela qual o país chama a atenção de outros — tanto para atrair turismo e intercâmbios quanto investimentos e trocas governamentais — através da cultura nacional. Parte do projeto envolve a criação de uma boa imagem, que fosse atrativa, para o exterior.
Para a diretora do Instituto Brasil-Coreia, Daniela Mazur, esse movimento não é apenas uma expansão midiática mas, também, uma mudança estrutural no modo como a Coreia se posiciona globalmente. Segundo ela, “a Coreia do Sul deixou de ser apenas consumidora de cultura para se tornar produtora de um imaginário global”.
Quando a fantasia dos homens coreanos vira negócio (e também um risco)
Dentro do contexto e do aumento do interesse de fãs do mundo inteiro de se aproximarem do país e dos coreanos, surgiu na internet o site Oh My Oppa Korea. A plataforma, que foi criada em 2018 na Coreia do Sul e que hoje já não funciona mais, prometia passeios com homens coreanos pelos pontos turísticos mais famosos de Seul enquanto eles atuavam como guias no estilo “protagonistas de K-drama”, oferecendo fotos, visitas e conversas personalizadas.
A australiana Natalie Ambrose contratou o serviço em 2019, enquanto morava na Coreia do Sul e trabalhava como professora de inglês em duas escolas públicas no interior no país. O conceito de contratar um guia pelo Oh My Oppa sempre pareceu mais divertido do que romântico, mas a professora reconhece que esse não é o caso de todo mundo.
Natalie diz que, antes de ir para o país, já “tinha ouvido dizer que os homens coreanos provavelmente considerariam uma estrangeira ‘fácil’ para encontros casuais, então entendi que tentar encontrar um relacionamento sério na Coreia provavelmente seria difícil”.

Print do perfil do Oh My Oppa no Instagram mostrando um encontro realizado por um guia com a australiana Natalie Ambrose. (Reprodução - Tradução livre / @ohmyoppakorea)
Esse fato também foi percebido por Anna em suas experiências com homens que conheceu em aplicativos de relacionamento. “Às vezes, eu usava o Tinder e, depois de trocarmos contatos do Instagram, percebi que muitos homens coreanos me davam seus segundos perfis enquanto em seus perfis principais havia fotos com suas namoradas. Eles queriam conhecer especialmente garotas estrangeiras, porque a maioria delas são turistas ou estudantes de intercâmbio que não ficam muito tempo”, conta.
A estudante alemã também acredita que isso geralmente acontece porque eles devem considerar as estrangeiras mais “mente aberta”, e dispostas a fazer o que os sul-coreanos quiserem.
Apesar de ter ciência desse tipo de interesse dos homens coreanos, Natalie Ambrose conheceu o serviço do Oh My Oppa ao pesquisar sobre o que fazer na sua primeira viagem sozinha para Seul, e pareceu-lhe uma boa ideia tentar. O que mais chamou sua atenção foi a combinação do preço acessível com o fato de que o site “parecia ser muito legítimo e tinha muita presença online. E eu também gostei muito deles deixarem claro nos Termos que não eram um serviço de encontros, o que também me fez sentir segura”.
O processo de agendamento do tour foi simples: Natalie inscreveu-se na plataforma, recebeu as informações por e-mail e foi adicionada em um chat no KakaoTalk — aplicativo utilizado para conversas na Coreia do Sul, equivalente ao WhatsApp — , pelo qual a empresa monitorava a conversa entre ela e o guia.
“Eu havia escolhido o passeio (acho que só tinha duração de duas horas) em um dos grandes mercados de comida de Seul, além de uma caminhada ao longo do rio. Fomos ao mercado, compramos kimbap, depois caminhamos até um bar, tomamos uns drinques e continuamos a caminhada pela margem do rio. Tínhamos muito em comum por causa dos nossos diplomas em música, então lembro que conversamos bastante sobre isso. Acho que, no geral, foi uma boa experiência.”
A experiência positiva da professora australiana não foi a única da plataforma, que chamava a atenção de turistas. O site pedia um cadastro da cliente que logo em seguida escolhia o oppa e o tipo de passeio que gostaria de ter, e os preços variavam entre o equivalente a 200 e 250 reais.
Porém, apesar do sucesso, o site não durou muito: o Oh My Oppa Korea parou de funcionar com o início da pandemia de Covid-19. Contudo, fãs continuaram falando sobre as experiências nas redes, o que pode ter inspirado novas iniciativas. No Brasil, em 2025, chegou uma plataforma semelhante chamada de K-Drama Date SP, mas que prometia até encontros “mais íntimos” pela capital paulista.

Montagem dos prints dos encontros oferecidos pelo site K-Drama Date SP.
(Divulgação / Papo de Dorama)
A pesquisadora Min Joo Lee, professora assistente na Occidental College em Los Angeles e autora do livro Finding Mr. Perfect (Em busca do Sr. Perfeito, em tradução livre), elaborou uma pesquisa sobre relacionamentos entre estrangeiras e homens coreanos. Durante a sua viagem de campo na Coreia do Sul, ela percebeu que muitas turistas “estavam interessadas em visitar locais significativos, mas também passavam grande parte de suas noites indo a baladas e bares para conhecer homens coreanos”.
Nesse sentido, Min Joo explica que as produções midiáticas têm um papel fundamental na construção de expectativas de mulheres estrangeiras. Ela afirma que, muitas vezes, “a única imagem de homens coreanos [com quem muitas dessas mulheres teriam contato] seria a dos fictícios que viam em programas de televisão”. Assim, a partir do que é apresentado constantemente para o público, elas esperam chegar no país e encontrar homens atenciosos, carinhosos e que fariam tudo por elas. A pesquisadora contou que uma das pessoas com quem conversou durante o seu tempo lá disse que "estar na Coreia é como ser uma personagem do meu próprio drama de televisão coreano".
Min Joo destaca que esse encantamento cultural funciona tanto como um impulso quanto como armadilha:
“Tanto as mulheres estrangeiras quanto os homens coreanos que observei em minha pesquisa têm fantasias eróticas racializadas sobre o outro. Por um lado, esses estereótipos atraem turistas femininas e os homens uns aos outros. E por outro, eles podem ser o gatilho que os separam, especialmente se perceberem que as pessoas reais com quem estão saindo são muito diferentes da imagem idealizada que tinham da outra pessoa anteriormente”.
Nos últimos anos, o aumento do turismo motivado pela Hallyu expôs um lado mais preocupante da busca pelo homem perfeito. “Quando a gente está falando de ficção seriada, televisiva, filmes, etc.”, afirma Daniela Mazur, que também faz pós-doutorado em Comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF), “você tendo consciência de que nem todos os homens brasileiros são o Cauã Reymond, também precisa ter noção de que nem todo ator coreano que está em um drama vai representar os homens que são do dia a dia. Ao contrário, é uma sociedade extremamente complexa”.
Embora a Coreia do Sul seja um país amplamente reconhecido pela sua segurança pública, no âmbito dos golpes românticos o problema é crescente: de acordo com uma matéria de outubro de 2025 do jornal The Korea Times, o Partido Democrático da Coreia informou que os relatos de golpes românticos entre janeiro e setembro deste ano totalizaram 100 bilhões de won (aproximadamente 380 milhões de reais), quase o dobro do que foi registrado em 2024 pelo órgão.
Além disso, uma reportagem da CNN World de 2020 revelou que, a partir de uma pesquisa de 2017 da Comissão Nacional dos Direitos Humanos da Coreia do Sul, 42% das noivas estrangeiras na Coreia do Sul já admitiram terem sofrido violência doméstica.

Infográfico criado pela CNN World com base nos dados fornecidos pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos da Coreia do Sul. (Reprodução - Tradução livre / CNN World)
Para Daniela Mazur, os dados comprovam os perigos reais causados pela ilusão criada através das produções midiáticas sul-coreano:
“O problema começa quando as linearidades, as fronteiras, entre o que é real e o que não é real ficam nebulosas. Existem diversas formas na realidade de se representar o homem sul-coreano, assim como também há maneiras de representar a mulher sul-coreana. Só que o que a gente está percebendo aqui, frente à Onda Coreana, é que para além desses produtos, também o que está sendo representado ali são narrativas a serem interpretadas, e aí tem vezes que as pessoas meio que aceitam aquilo apesar de saberem que é uma ficção”.
Dentro dessa pauta, Gardênia Pereira reforça a importância de consumir produções estrangeiras com senso crítico e respeito cultural. “A gente precisa ter cuidado, como ocidentais, ao consumir uma cultura que é muito diferente da nossa. Apesar das semelhanças, ainda existem diferenças importantes. Quando isso é ignorado, o risco de frustração e sofrimento emocional aumenta”, pontua a psicóloga.
Para saber mais do assunto:
O fascínio pela cultura pop sul-coreana é real, legítimo e continua crescendo no Brasil, mas ele não pode existir sem reflexão. Entre narrativas romantizadas, estratégias de mercado e experiências vividas fora da tela, a diferença entre o que é ficção e o que é realidade precisa ser constantemente revisitada. Consumir a Hallyu com senso crítico não significa perder o encanto, mas sim compreender que, por trás dos roteiros perfeitos e personagens idealizados, existe uma sociedade complexa, plural e atravessada por contradições — como qualquer outra.
Nesse sentido, o podcast Hallyu Cast, lançado no Spotify, surgiu como um espaço de diálogo e análise sobre a Hallyu para além do encantamento inicial. O programa discute justamente os limites entre ficção e realidade, os estereótipos construídos em torno de idols e personagens de dramas, e como essas narrativas impactam as expectativas emocionais de fãs ao redor do mundo. Para quem quer entender melhor esse fenômeno com informação, contexto e senso crítico, o Hallyu Cast é um convite:
No fim, apreciar a cultura pop sul-coreana também exige responsabilidade e senso crítico. Entre narrativas cuidadosamente construídas e experiências reais, é fundamental refletir sobre o que se consome, como isso molda expectativas e até que ponto a fantasia interfere nas escolhas fora da tela. Encanto e admiração podem, e devem, caminhar junto com consciência!





