Quando o K-pop inspira as palavras: escritores brasileiros lançam livros baseados nos idols favoritos
- Leonardo Fernandes

- 29 de out.
- 8 min de leitura
No Dia Nacional do Livro, abordamos a música pop coreana como porta de entrada para autores independentes e o universo das fanfictions

(Jonnie Dantas / Reprodução)
Não importa o fandom que você faça parte, uma coisa é certa: as fanfictions, ou fanfics, estarão ao seu alcance em algum momento.
E no K-pop isso não é diferente: fãs de boygroups e girlgroups criam histórias inspiradas nas personas dos ídolos, inseridos numa gama de enredos (ou plots). Dessa forma, não há dúvidas de que a literatura respira nos computadores e celulares de jovens e adultos que carregam photocards e usam icons dos artistas.
No Dia Nacional do Livro, que ocorre em 29 de outubro e celebra a fundação da primeira biblioteca brasileira, a Real Biblioteca (RJ), o Café com Kimchi decidiu explorar o tema. Nós relembramos que, dentro ou fora do catálogo de editoras tradicionais, os ficwriters criam enredos complexos, profundos e únicos, disponíveis ao alcance de um clique; e que suas histórias nunca foram tão relevantes para a cultura de fã quanto hoje.
O K-pop abre as portas para novos fãs... E a criação de um podcast
A creator e podcaster Brenda Zulp é o exemplo de quem foi fisgada pelo universo das fanfics. A co-criadora do Fanfic Show, podcast brasileiro que aborda fanfiction e literatura nacional, começou a acompanhar os artistas de K-pop de forma despretensiosa até conhecer o BTS — que foram só a ponta do iceberg para chegar nas fics.
Brenda explica que o pop sul-coreano possuía um "sentimento diferente", e que o explorar desencadeou seu descobrimento a respeito das fanfics, além da vontade de fazer mais. Nesse contexto, o Fanfic Show surgiu para falar da "ficção de fã" não apenas de um nicho ou de um grupo, e ir além das explicações de temas básicos como "o que são one shots?", "como escrever uma fanfic?" e outros. O Fanfic Show, dessa forma, queria explorar e apresentar a comunidade de escritores e leitores para cada vez mais pessoas, e dar luz a quem integra esta atmosfera; sejam writers, capistas, criadores de trailers e mais.
"A gente sentia falta de um espaço que falasse sobre fanfic, e um espaço que fosse democrático. Na época não tinha. Aí tivemos a ideia em 2020, e fomos para a Twitch entrevistar (as pessoas). A gente programou uma temporada e seriam temporadas de dez entrevistas, e íamos entrevistar autores de fanfics para falarem sobre suas histórias", conta Brenda.

(Brenda Zulp / Reprodução)
Após cinco anos de projeto, o Fanfic Show abriu o leque de atividades para a literatura nacional, e o podcast conta com voluntários para sua produção e divulgação, além de oferecer pacotes de conteúdo quando surgem parcerias. "Todo mundo trabalha em prol do amor pelas fanfics e da literatura nacional. Observando os espaços, a gente vê influencers literários que falam sobre livros, mas a literatura do Brasil acaba ficando com o menor engajamento. O espaço para o independente é menor ainda".
Eu, como escritora, queria que houvesse um espaço que valorizasse mais a literatura nacional, principalmente esta (independente). Fanfic e livro não diferem em nada, pois para criar um plot é a mesma coisa, e os personagens também; você vai só pegar um corpo (pessoa) para ser o seu modelo. Mas a estrutura, desenvolvimento, diálogos e personagens não diferem em nada.
Brenda Zulp
Falar sobre o tema ao invés de apenas o consumir abriu o olhar de Brenda para as possibilidades
A partir do trabalho no Fanfic Show, Brenda entendeu que seus gostos pessoais para leituras poderiam coexistir com a descoberta de autores e histórias. Nisso, a podcaster diz que conhecer fanfics e ficwriters, e abrir os olhos para a novidade, é um ponto positivo ao longo da estruturação de episódios, pautas e entrevistas do programa.
"Eu comecei com fanfics de Orkut, e depois quando retornei às fanfics após muito tempo, eu era leitura de fanfics de Crepúsculo. Então para mim não houve tanta dificuldade em buscar histórias que fugissem das bolhas, e é algo que promovemos no Fanfic Show: não é apenas sobre o que gostamos, mas também sobre quem está nos vendo", conta Brenda.
Navegar entre os fandoms de K-pop e conhecer suas múltiplas histórias integra a missão do podcast. Segundo a criadora, sair da zona de conforto e buscar narrativas de outros segmentos, mesmo que sejam de um grupo ou ship diferentes, é um fator importante para o Fanfic Show ser democrático e plural em suas divulgações e conteúdos.
O Fanfic Show acredita na comunidade e na junção das pessoas que amam algo, e que juntas colocam isso lá em cima. E, claro, (acredita) na desmistificação das fanfics, que ainda assim são vistas com preconceito e são marginalizadas.
Brenda Zulp
Além disso, o fato da fanfic ser acessível é algo atraente ao público. "Ela é uma literatura acessível seja para o leitor quanto para o escritor. Não é preciso de um computador mega-blaster-ultra para ler ou escrever. Inclusive, há muitos autores que escrevem no celular", aponta a podcaster, que complementa a veracidade de que as fanfics podem ser um caminho para uma pessoa ter gosto pela leitura, experimentando gêneros de escrita e enredos.
"As fanfics estarem se tornando livros adaptados faz com que os leitores unicamente de fanfics também comecem a se interessar por livros de fora do estilo. A migração pode acontecer tanto de um lado quanto do outro".
E das fanfics de K-pop surgem histórias publicadas por editoras, como "Po(o)r Alfie"
Dentre os exemplos de fanfics tornadas livros que Brenda menciona, o romance "Por Alfie: Até o último acorde" é citado. Escrito pela brasileira Jonnie Dantas, o livro publicado pela Editora Rocco era, há alguns anos, uma fanfiction do grupo EXO chamada "Poor Alfie" (como a canção da banda de punk rock The Jam).
Jonnie relata que sua vontade de escrever um "clichê dos anos 80" foi o que a impulsionou para criar a história. Inspirada por filmes, séries e outros livros que abordam a década em questão, a autora desejava criar algo que explorasse a inocência do primeiro amor, o sentimento de solidão e a trope do "coming of age". Dessa maneira, o que não passaria de uma one shot virou um exercício de escrita que recebeu apoio de amigos e muitos leitores. Para ela, a transformação de "Poor Alfie" em "Por Alfie" era algo que nunca imaginou ser possível.
"Sempre sonhei em ser escritora, mas era um sonho inalcançável. Escrevia para mim e pelo prazer de escrever, e foi uma surpresa enorme receber o convite da publicação. Levei quase uma hora para me acalmar antes de conseguir responder", diz Jonnie.

(Jonnie Dantas / Editora Rocco / Reprodução)
A missão para adaptar a fanfic levou dois anos de pesquisa para enriquecimento e ambientação da história no Brasil — mais especificamente no estado do Rio Grande do Sul, com sua cena de garage rock dos anos 1980 —, incluindo leituras adicionais e horas de documentários e filmes, sem que Jonnie mudasse a essência que os fãs originais já adoravam na fanfiction. A personagem chamada Aline, por exemplo, não existia na fanfic original e acabou se tornando uma das figuras favoritas da escritora na trama.
E a respeito dos fãs, Jonnie conta que o apoio da comunidade foi essencial para que pudesse seguir adiante com "Por Alfie". "Eu nunca teria chegado onde cheguei sem o apoio dos leitores. Sou grata por cada mensagem de divulgação, apoio e carinho, e por cada sugestão ou crítica nos capítulos que foram postados (na época). Foram eles que fizeram 'Por Alfie' ser o que é hoje, recomendando a história para outras pessoas", fala.
Fico muito emocionada quando recebo mensagens de adolescentes queers que dizem se identificar com os personagens que criei, e que encontraram refúgio na história. Que ela trouxe esperança para eles. Já ouvi algumas vezes a frase "'Por Alfie' salvou minha vida", e é surreal pensar que algo que escrevi possa ter essa força.
Jonnie Dantas
Jonnie, que é uma fã das bandas nas playlists de suas histórias, esteve diante de uma comunidade on-line que impulsionou a sua criação e deu asas para que os personagens Oliver e Arthur, junto de suas complexidades e desenvolvimentos, chegassem a uma editora do circuito mais tradicional de publicações.
As editoras estão preparadas para o "novo boom" das fanfics?
"Por Alfie" é um exemplo de como as editoras brasileiras passaram a observar o engajamento com fanfictions na web. Brenda Zulp relembra, inclusive, que fanfics tornadas livros não são uma novidade no mercado literário, exemplificando obras como "Cinquenta Tons de Cinza" e "After", originalmente fanfictions de Crepúsculo e do One Direction; e "Sábado a Noite" de Babi Dewet no Brasil, anteriormente uma fanfic da banda McFly. Entretanto, este olhar para o nicho de K-pop torna-se evidente nos anos mais recentes.
"As editoras mais tradicionais ainda estão dando pequenos passos, e querendo ou não, acho que ainda é uma questão dos autores também terem presença nas redes sociais, o que considero um divisor de águas e uma motivação para as publicações. Mas a gente não pode desistir, entendeu? Temos que aproveitar os momentos em que há aberturas de recebimento de manuscritos, seguir as editoras e ter um perfil presente", indica Brenda.
As pessoas veem as fanfics ainda muito no mercado independente, mas é algo que tem crescido. A gente está chegando em produções de audiovisual, com fanfics que viraram webséries no YouTube, e estamos caminhando.
Brenda Zulp
A podcaster complementa o contato direto que as editoras independentes possuem com os leitores e ficwriters. Nesse caso, Brenda menciona os brindes de pré-vendas e o trabalho gráfico de livros de fanfics, tão bons quanto os de editoras do circuito tradicional. "São brindes, cards, photocards dos personagens, pôsteres, agora até ecobags. Isso tudo ajuda na experiência, porque muitas pessoas compram os livros ou porque conhecem a fanfic e se apaixonaram, ou porque gostam dos autores também, por exemplo".
"Com o 'boom' das editoras de fanfics entre 2021 e 2023, alimenta-se o desejo da possibilidade de ser um escritor, mas posso sim me tornar um autor publicando uma adaptação independente, como pela Amazon", Brenda adiciona.
Quer escrever? Deixe sua imaginação fluir e não tenha medo!
Para autores iniciantes no mundo das fanfics, ou que um dia desejam ser publicados, Brenda Zulp dá a dica de escolher um tema que goste para criar a história em cima, e não ter medo de tentar. Em suas palavras, as fanfictions são um espaço acessível que você pode usar o seu amor por algo para escrever:
"Não é um espaço que pede para você ser doutor em gramática ou língua portuguesa. É sobre você escrever algo que imaginou, ou que ninguém tenha imaginado ainda, e para se jogar nele sem medo. Sempre vai chegar numa pessoa que vai gostar da sua história, vai se identificar com o seu estilo e vai começar a ler".
Seja por meio de projetos como o Fanfic Show, ou por histórias como "Por Alfie", a fanfic pode mudar o preconceito que alguns públicos têm com o gênero. Através de suas paixões por K-idols, músicas e outros, ficwriters encaram desafios complexos para darem vida às ideias mais criativas e plurais. "Quando as pessoas reclamam de livros e falam, 'nossa, parece uma história do Wattpad', a minha pergunta é 'cara, que tipo de fanfic você leu?'", Brenda comenta com bom humor.
Jonnie Dantas também indica, para quem sonha em publicar suas fanfictions como livros, que estude o mercado literário e como ele funciona, para entender que tipo de publicação você procura; fora acompanhar autores que começaram no meio para ter dicas, e aprender a como trabalhar seus personagens e enredos para além da fanfic, como romance original.
Ademais, Jonnie transmite a mensagem de que nunca é tarde para (re)começar, e que não existe nada mais corajoso do que ser você mesmo. Amar e não ter medo do julgamento a respeito de suas criações pode tornar um ficwriter cada vez mais confiante, e certo de que só ele poderia ter criado algo com suas próprias referências e visões de mundo.
No Dia Nacional do Livro, a gente lembra que as fanfics, tão intrínsecas à fan culture do mundo todo, são importantes.
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Conheça o trabalho do Fanfic Show aqui!









EU AMEY TANTO, TANTO PARTICIPAR DESSA ENTREVISTA, A JONNIE É UMA AUTORA QUE NÃO SOMENTE SOU FÃ, MAS ADMIRO TUDO NELA. E, É ISSO GALERA, FANFICS É LITERATURA, SIM!!!