O livro da autora X. Tian está disponível no Brasil, publicado pela Editora Rocco
(Divulgação/Editora Rocco)
Discussões raciais são sempre repletas de ramificações. Não existe apenas um “lugar de fala” dentro de uma comunidade tão plural e opressões podem ser segmentadas por recortes mais generalistas como gênero, classe social e sexualidade, que abrem caminhos para mais e mais ramos a serem explorados. No caso de “Toda a Beleza ao Redor”, livro da autora X.Tian, a linha que divide uma experiência racial da outra é tênue; às vezes sutil e simultaneamente perceptível.
Na obra, publicada em junho no Brasil pela Editora Rocco, conhecemos as irmãs sino-americanas Annalie e Margaret Flanagan. A primeira é loira e tem olhos claros, como o pai americano, enquanto a segunda tem todos os traços de sua mãe chinesa. Um dia, a garagem da casa delas é vandalizada por uma ofensa racista e a busca pelo autor do crime de ódio vai tirá-las de suas zonas de conforto e levantar discussões que vão desde a passabilidade branca até o não-pertencimento.
O relacionamento entre as duas personagens principais é quebrado, considerando não somente o fato de que a família foi abandonada pelo pai e a mãe é uma figura extremamente frustrada e conservadora, mas também por estarem distantes até quando dividem o mesmo espaço físico. O livro é repartido em pontos de vista das duas e isso não é um problema, mas as raras trocas entre Annalie e Margaret causam certo estranhamento — e, provavelmente, esse desconforto foi intencional por parte da autora.
A trama tem como ponto de partida a insaciável vontade de Margaret em ver a justiça sendo feita e o racista recebendo a punição que merece. Esta busca, no entanto, é mais interessante pelo modo em que Annalie começa a perceber a realidade em torno de toda a sua existência. Ela cresceu ouvindo que “não parecia asiática” como um elogio e não quis se enxergar como vítima de um crime de ódio quando o caso foi repercutido na cidade.
É interessante observar sua percepção se tornando cada vez mais apurada sobre a opressão racial que sempre a cercou, mesmo que não explicitamente. Margaret, por outro lado, nunca viveu uma vida em que não fosse o alvo nítido de tal violência. São as ações e falas dela, inclusive, que colocam o leitor em posição de atenção genuína sobre como o racismo contra pessoas asiáticas opera e como os agressores e supostos "aliados" agem quando são desafiados a se posicionar.
“Toda a Beleza ao Redor” tem uma linguagem inteligível e uma escrita fluida que colaboram com o nosso entendimento sobre a dor da chamada “minoria modelo”, que nunca esteve tanto no centro dos debates quanto agora — mas que, definitivamente, continua sendo alvo de violência racial. O livro é quase didático quando nos leva a compreender a complexidade e o sentimento de não-pertencimento na mente, emocional e cotidiano de pessoas racializadas em um meio majoritariamente branco.
“Falar sobre racismo é mais ofensivo do que um crime de ódio. As pessoas prefeririam que eu apenas ficasse triste, sozinha e de boca fechada. Então, eles poderiam ser os heróis e expressar simpatia sem se sentir desconfortáveis” — Margaret Flanagan, em “Toda a Beleza ao Redor”.
X. Tian e sua inspiração para escrever “Toda a Beleza ao Redor”
(Reprodução/Cassie Gonzales)
X. Tian nasceu na China e foi morar nos Estados Unidos após completar um ano de vida. Formada em História e Direito, a autora começou a escrever “Toda a Beleza ao Redor”, seu primeiro livro, após as eleições de 2016 nos Estados Unidos, mas já tinha certa experiência na escrita literária devido as fanfics que produzia. Na época, o republicano Donald Trump tinha sido eleito como presidente do país. Em entrevista ao site Book Web, ela explicou que esse período fez emergir a necessidade de um desabafo.
“Lembro-me de estar muito perdida e apenas querendo encontrar uma maneira de escrever sobre esse sentimento de que a casa que eu amava, de repente, parecia que havia me rejeitado.”
Não muitos meses depois, em fevereiro de 2017, um caso de racismo aconteceu com uma família asiática em Minnesota, na região centro-oeste dos Estados Unidos. Eles tinham se mudado há dois meses e a garagem do portão deles foi pichada pela palavra “chinks”, uma injúria racial em inglês direcionada a pessoas amarelas. A princípio, X. Tian não pretendia escrever sobre o tema, mas sentiu que precisava trazer novos holofotes para a discussão.
“Isso me deu o cerne da história como ponto de partida para explorar as emoções e reações que tive em todas as vezes em que experimentei um ato racista na minha vida. Em particular, pensei que seria interessante ter como personagens principais duas irmãs, que abordaram as consequências em direções totalmente opostas, porque muitos de nós na comunidade asiática também lutamos para lidar com isso. Há uma grande pressão cultural para apenas ‘seguir em frente’ e não deixar que isso nos afete, mesmo que isso tenha um impacto emocional significativo.”
Na mesma época, a autora também tinha testemunhado um ato racista na volta de uma viagem, onde uma mulher achou que uma pessoa estava furando fila e a chamou pela mesma ofensa racial escrita no portão da família asiática mencionada anteriormente. Ao repreender a moça, X. Tian não se sentiu apoiada por ninguém que estava em volta.
“Um dos temas principais que eu queria explorar era o fato de que essa mulher basicamente arruinou minha experiência, mas ela provavelmente nunca mais pensaria naquele momento, enquanto eu ainda penso nisso o tempo todo. Parecia extremamente injusto que ela não apenas perpetuou um ataque racista, mas também não teve que lidar com nenhuma das consequências emocionais. Aquele dia me deixou especialmente dedicada a terminar o livro e tentar destilar aquele sentimento em uma história.”
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