Apesar de algumas produções terem alcançado o público mainstream, a sétima arte deste nicho continua sem espaços de ampla representatividade
(Korean Film Council/Reprodução)
Será que a Coreia do Sul tem uma indústria cinematográfica LGBTQ+? Esta pergunta pode soar óbvia para alguns, caso a primeira ideia de cinema queer que vem à cabeça seja a das produções Boys Love, por exemplo. Contudo, não é deste tipo de audiovisual, exclusivamente, que estamos falando a respeito.
Ao longo de décadas, com registros datados dos anos 60, diretores e roteiristas sul-coreanos tem tentado abordar a representatividade em seus filmes. Apesar disso, barreiras mercadológicas e sociais estiveram à frente destes projetos até hoje, e a passos vagarosos, a Coreia está caminhando para fomentar um nicho de cinema que inclua a comunidade LGBTQ.
Quando pensamos no cinema queer da Coreia do Sul, propõe-se a árdua tarefa de criar uma linha cronológica, encontrar referências e saber o porquê de tais filmes serem importantes. Nisso, trilhar de forma metódica a temporalidade dessa indústria é difícil, e uma análise sobre o futuro deste cinema é ainda mais complicada.
Coreia do Sul: pouco investimento em mostras LGBTQ+ e alcance mínimo de filmes
Antes de tudo, é preciso entender como a Coreia do Sul enxerga esta categoria de produção cinematográfica. De acordo com Kelley Dong, colunista de cinema da plataforma de streaming MUBI, em seu texto para a coluna Notebook Primer, as produções feitas por diretores, produtores e roteiristas LGBT no país recebem um alcance ínfimo se comparados a outros projetos blockbusters.
Em suas palavras, este "acesso limitado compõe (também) uma tarefa de determinar o que se qualifica como um longa coreano queer"; a falta de visibilidade a este cinema gera obstáculos na hora de formar um nicho, ou uma vanguarda delimitada, de títulos que sejam qualificados como LGBTQ+.
Longas com temáticas lésbicas, gays ou trans na Coreia do Sul, até certo tempo atrás, não encontravam nenhum espaço. Um exemplo está na produção Mascara, de 1995, estrelada pela atriz transgênero Ha Ji-na e que teve participação do diretor Park Chan-wook: um filme de baixo orçamento, completamente indisponível na web, e que teve literalmente uma exibição registrada com bilheteria de $170. Ou então o romance lésbico Jealousy, de 1960 e feito por Han Hyung-mo, cuja única cópia existente está desaparecida.
Notam-se, neste cenário, barreiras para registrar onde o cinema queer começa e termina na Coreia do Sul. E o acesso limitado do público às produções, seja em grandes salas ou em festivais, tem como consequência a dificuldade de cunhar um gênero para tais filmes no país.
Poster de "Mascara" (1995) (Korean Film Council/Reprodução)
Contudo, há certos títulos que podem ser tidos como pioneiros, e que ajudam a nortear o reconhecimento desses projetos. The Pollen of Flowers, de 1972, é visto por muitos como "o primeiro filme gay da Coreia" — uma história de tragédia envolvendo um grupo familiar, cujas nuances de uma relação homoafetiva entre dois homens fizeram com que o título fosse revisitado anos depois, tanto por críticos quanto por acadêmicos.
O problema principal está na falta de distribuição e acervo coletado, para desenvolver a historicidade do cinema queer sul-coreano. Mesmo que haja exemplos de filmes e dos nomes que criaram tais filmes, a limitação do público à obra fez com que tais projetos caíssem no esquecimento. Vale ressaltar que, nos exemplos citados acima, suas exibições aconteceram ou em festivais de cinema específicos do país, como o Korea Queer Film Festival, ou uma única vez numa sala.
Os filmes queer na Coreia e sua "aceitação social"
Outro ponto importante a respeito do cinema LGBTQ+ na Coreia é que sua existência está conectada à situação política do país. Nesse sentido, o movimento dos direitos LGBT sul-coreanos passou a ter maior visibilidade nos anos 90, e em setembro de 1997 foi realizado na Universidade de Yonsei o primeiro Festival Internacional de Filmes Queer de Seul — organizado por ativistas ligados ao sociólogo Seo Dong-Jin.
Seo Dong-Jin foi um dos protagonistas na introdução da chamada "teoria queer" nas universidades sul-coreanas, e também é considerado um dos primeiros ativistas do Chingusai: um dos principais e mais antigos grupos de luta pelos direitos homossexuais e demais minorias queer na Coreia. No festival de 97, os organizadores exibiram uma cópia do longa clássico Happy Together, de Hong Kong, que havia sido anteriormente banido pelo governo.
As cenas de romance entre Leslie Cheung and Tony Leung no filme — que inclusive deram a Wong Kar-wai a Palma de Ouro de Melhor Diretor em Cannes — foram um ultraje para as autoridades. Porém, o debate que este e outros longas estrangeiros e locais trouxeram foi mais do que o suficiente, e o movimento LGBTQ+ na sétima arte da Coreia pôde ganhar um pouco mais de força na época.
Assim, é visto que a censura permeia o público coreano desde sempre. Em vários momentos, foi necessário que estudiosos e defensores do movimento fossem à frente do sistema, para que filmes de temática queer pudessem ter mínimos espaços na Coreia do Sul. E ao longo dos anos 90 e início dos 2000, houveram filmes do nicho mainstream que tentaram também apresentar tramas e interações que fugissem da heteronormatividade, mas de maneira "camuflada"; assim como descreve os autores Pil Ho Kim e C. Colin Finger no artigo acadêmico Three Periods of Korean Queer Cinema: Invisible, Camouflage and Blockbuster:
Alguns filmes mainstream produzidos entre 1998 e 2005 tem características similares na hora de "esconder" seu conteúdo queer no background, para evitar desentendimentos com as autoridades e os conservadores homofóbicos.
Até mesmo dentro do movimento Chingusai da Coreia do Sul, como apontam Ho Kim e Colin Finger, houve a discussão a respeito da "normalização" do queerness para encaixá-lo dentro da aceitação social sul-coreana; numa estratégia de esconder a sexualidade e as expressões artísticas para serem inseridas na sociedade como algo "normal e comum", aos olhos do conservadorismo. Este comportamento, que é intrínseco à nações cujo preconceito está sistematizado, afeta diretamente a produção cultural das pessoas, e o mesmo acontece na Coreia.
Em 2002, o longa Road Movie (que teve o ator veterano Hwang Jung-min protagonizando) quase alcançou o estrelato de um blockbuster, e o diretor Kim In-Sik foi reconhecido com prêmios pelo trabalho. No entanto, o título vendeu apenas 16 mil ingressos nos cinemas sul-coreanos, e isso colocou as grandes produções do gênero para trás outra vez.
O último filme que chegou aos holofotes de forma parecida no país foi No Regrets, de 2006, com o ator Kim Nam-Gil e dirigido por Leesong Hee-il. No Regrets é considerado o primeiro longa-metragem sul-coreano a ser feito por um diretor abertamente gay.
Há produções Boys Love, mas poucos atores publicamente assumidos na indústria dos k-dramas. O marketing em cima das relações homoafetivas é real, mas este existe dentro dos interesses de uma empresa para vender um produto e exportá-lo. Há personagens LGBTQ+ em séries e filmes, mas seus papéis são pouco explorados e/ou representativos. O cinema queer na Coreia do Sul, que deveria teoricamente ser representado por diretores, produtores e demais profissionais da comunidade, sofreu um apagamento antes mesmo de conseguir levantar voos maiores.
Quer dizer que não há mais cinema LGTBQ+ na Coreia do Sul?
Muito pelo contrário. O que se propõe com este texto é uma reflexão acerca da existência de um cinema que, mesmo com tamanhos obstáculos ao longo dos anos, ainda tem pinceladas de se reerguer. Alguns dos exemplos citados acima, que datam dos anos 90, 70 e 60, são apontados como "vanguarda" de maneira superficial, por justamente haver pouca informação acerca do cinema queer sul-coreano do passado — e é até difícil pensar se tais títulos poderiam se encaixar nos moldes atuais do que é representatividade.
E no presente, há sim mérito na produção de seriados Boys Love e Girls Love. Independente da fabricação destas mídias para um nicho de público, ocupar um espaço tão restrito na massa de enredos heteronormativos é uma pequena vitória que ainda pode ser incrementada e aperfeiçoada — pois estes seriados não são financiados por grandes canais coreanos. Criadores, produtores e artistas LGBTQ+ continuam a existir na Coreia do Sul, assim como os festivais de cinema e as exibições nas salas; mas ainda é necessário espaço para mais no mainstream.
Em 2014, a diretora July Jung lançou o longa A Girl At My Door: drama com a atriz Bae Doona que buscou representar como a mulher lésbica é vista dentro da sociedade coreana, principalmente em áreas externas às grandes cidades. A Girl At My Door, que condecorou Jung com quatro prêmios (incluindo o de Melhor Diretora/Roteirista no Women in Film Korea Awards) teve o orçamento limitado também por conta da representação lésbica no enredo; e boa parte do investimento veio do Conselho de Cinema Coreano. Nisso, Bae Doona e a atriz Kim Sae-ron aceitaram os papéis sem serem pagas.
A Coreia do Sul é, assim como diversos países cuja sociedade é conservadora e tradicional, um território em que a produção queer ainda precisa quebrar muitas barreiras — tanto nos blockbusters quanto no circuito independente. Há cineastas coreanos que buscam por espaço para expor suas ideias e produções, mas a falta de investimento somada ao acesso limitado do público às obras dificultam este cenário.
Isso é reflexo de uma nação em que os direitos LGBTQ+ ainda não estão 100% garantidos legalmente, e de um estigma social erguido em não reconhecer a vivência queer tanto dentro quanto fora do audiovisual, caso não seja representada por papéis modestos, caricatos ou secundários nas mídias maiores.
Quantos filmes com ou feitos por LGBTQ+ sul-coreanos você já viu? Sabe o porquê desses longas-metragens não chegarem até você?
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